08 Maio 2014 - Camila Dalla Pozza Pereira
No
domingo, dia 04 de maio, o programa Fantástico, da rede Globo, exibiu uma reportagem
acerca da correção da redação do Enem. Dez jornalistas prestaram a última
edição do exame com a tarefa de, na prova de produção textual, zerarem por
impropérios e deboches, por escreverem menos de sete linhas, por enviarem
mensagens aos corretores, por ferirem a norma do uso formal da língua, por
cometerem incoerência externa e por copiarem trechos dos textos motivadores
e/ou de questões.
A
jornalista que comandou a matéria convidou professores de cursos de Letras de
quatro estados para corrigirem e discutirem esses dez textos a fim de comparar
as notas dadas por eles e pela banca corretora do Enem, o que é um certo
“milagre”, pois quando trata-se de educação, língua e linguagem, quem menos a
grande mídia ouve são professores de ensino básico e do ensino universitário,
alunos de pós-graduação em Linguística e/ou em Linguística Aplicada e
linguistas e linguísticas aplicados, isto é, pessoas especializadas nessas
áreas. Infelizmente e normalmente vemos, ouvimos e lemos economistas e os
próprios jornalistas (alguns, com todos respeito aos que possuem uma postura
mais crítica em relação a isso) abordarem questões de ensino de língua e
educação linguística quando eles não são especialistas no assunto.
Voltando
à reportagem, destas dez redações, quatro foram anuladas pelos professores
consultados e pela banca corretora do Enem: uma continha o hino de um time de
futebol, a segunda teve um parágrafo escrito por meio da “língua do P”, a
terceira por conter um recado em tom de deboche ao corretor e a quarta por trazer
vários trechos de músicas que falam sobre bebidas alcoólicas, já que o tema da
redação do Enem 2013 foi os efeitos da implementação da Lei Seca no Brasil.
Todas estas redações possuíam impropérios propositais claros que fogem à
proposta de redação do Enem 2013 e, por isso, foram anuladas.
Porém,
houve divergência entre as notas dadas pela banca corretora do Enem e as dos
professores consultados nas demais seis redações e, é importante ressaltar,
também houve discrepância de opiniões entre os próprios docentes chamados pela
jornalista.
Por exemplo, um texto
que continha o seguinte pedido ao Papai Noel: “Por isso, Papai Noel, peço ao
senhor que ilumine a cabeça dos magistrados brasileiros no próximo Natal!”. Um
professor considerou este trecho uma infantilidade e como, segundo a sua
avaliação, o restante estava bom, ele avaliou este texto com 620 pontos; já um
outro docente deu, apenas, 210 pontos para a mesma redação e todos concluíram
que “as instruções dadas aos avaliadores são altamente subjetivas e fragmentadas”.
Em
relação a esta questão, primeiramente, temos de ter em mente que o que os
responsáveis pelo Enem dispõem ao público são as cinco competências avaliadas e
os níveis de notas dados a cada uma delas; no treinamento dados aos candidatos
a corretores, segundo fontes seguras, estes aspectos são esmiuçados e, assim, o
público em geral não tem acesso à grade de correção completa. Portanto, dizer
que as instruções dadas aos corretores são subjetivas é superficial.
Obviamente
que, em uma correção, há um caráter subjetivo, pois os corretores são seres
humanos e precisam, em certos momentos e em certas redações limites, tomar
decisões acerca de faixas de notas (afirmar se um texto é péssimo ou ruim,
razoável ou bom ou muito bom), de aceitar ou não alguma coisa, de classificar
alguma coisa etc. e para tomar essas decisões os corretores devem estar seguros
em relação a grade de correção e afinados com ela e entre eles.
Por
este motivo que uma correção na qual todos os envolvidos (corretores,
coordenadores e presidente de banca corretora e banca elaboradora) estão
reunidos em um mesmo lugar é o cenário ideal de correção, pois assim os
corretores são avisados pelos coordenadores sobre o que eles não podem deixar
passar, sobre o que a banca está considerando errado e certo, a tendência da
maioria das redações, quantidade de terceiras correções, casos atípicos, dentre
outras questões.
Fantástico
(veja no link abaixo)
Redações pontuam no Enem mesmo ferindo critério
técnico.
http://t.co/gFbpmdp5Tr via @G1
Outro
aspecto enfatizado pela reportagem foi a quantidade de textos corrigida por
cada corretor. Uma professora que corrigiu as redações do Enem foi
entrevistada, sem identificação por questões de sigilo, e esta afirmou que
a impressão que teve de todo o treinamento foi “boa” e logo a matéria frisou a
crítica da corretora sobre o número de redações que recebia por dia – 150 – , pois
para ela era uma demanda muito grande da qual ela não dava conta. Vemos aí a
intenção dos jornalistas em explorarem, apenas, as críticas e não também os
fatores positivos.Como
o Enem possui uma dimensão continental, dado o tamanho do Brasil, cada corretor
trabalha isolado na correção efetiva, mas talvez os responsáveis tenham de
pensar em uma outra estrutura, com grupos de corretores reunidos nas capitais
estaduais, por exemplo e em outras cidades do interior, mas isso daria muito
mais trabalho, principalmente em termos de logística de provas e de pessoas, e
demandaria muito mais gastos. Mesmo que a organização continue do modo como
está, algo deve ser feito para afinar melhor a banca corretora, pois metade das
redações ir para a terceira correção, como falamos em abril, não é sinônimo de
qualidade e demonstra um descompasso entre corretores, grade de correção e
banca elaboradora.
Em
bancas de correção de vestibulares tradicionais brasileiros, tanto com as
redações quanto com as questões dissertativas, cada corretor possui uma
quantidade mínima diária que deve ser, obrigatoriamente, corrigida para que o
processo caminhe tranquilamente e dentro do prazo estabelecido. Obviamente que
cada corretor tem seu tempo e cada um corrige de acordo com as suas
habilidades: uns levem mais tempo, outros menos; uns corrigem a cota mínima
numa manhã e vão embora, outros levam o dia todo para corrigir a mesma
quantidade. Portanto, esta corretora sentia-se bem corrigindo 50 redações, mas
certamente há aqueles que corrigem de uma maneira tranquila mais de 100 textos;
isso é subjetivo, pois, de novo, corretores são seres humanos.
A
questão do pagamento depender diretamente da quantidade de provas corrigidas
pelo corretor pode atrapalhar, com toda certeza, pois na ânsia de ganhar mais,
os corretores podem corrigir mesmo cansados, com sono e sem atenção (dadas as
circunstâncias de vida e de trabalho da maioria dos professores brasileiros,
isso não é de se espantar), o que numa banca convencional não acontece, já que
o sistema de pagamento é fechado; o corretor só não pode ficar aquém da cota
mínima.
Outra
redação que causou divergência entre os professores consultados pela reportagem
foi uma que continha incoerência externa, já que dizia que a Lei Seca foi
implementada pelo AI-5 e que o presidente Getúlio Vargas morreu em um acidente
de carro após ingerir vinho. Sabemos que a Lei Seca foi instituída recentemente
e que Getúlio suicidou-se. Dois dos professores deram nota zero, outros dois
deram notas entre 280 e 300 pontos por ficarem em dúvida se tratava-se de
deboche ou, realmente, de desconhecimento (o que não é impossível) – e aí
entra, novamente, a tomada de decisão por parte de corretor que, numa banca
tradicional, teria a possibilidade de perguntar ao coordenador o que a banca
acharia daquilo e como proceder – e um último professor considerou estas
afirmações apenas uma espécie de paródia e, por isso, emitiu uma nota alta.
Paródias
fogem ao tipo textual requerido no Enem – dissertação-argumentativa – e sátiras
e ironias até podem estar presentes, desde que não desconfigurem o texto, mas
está clara a incoerência externa e, seja por deboche ou ignorância, deve ser
avaliada negativamente.
A
ênfase dada pela jornalista, na reportagem como um todo, foi sobre três
redações que continham cópias dos textos motivadores e de questões do Enem; os
professores consultados zeraram todas e a banca corretora do Enem deu notas de
260, 380 e 440 pontos, todas abaixo da média, isto é, redações péssimas ou ruins.
Segundo
a fala do presidente do INEP, Francisco Soares, a correção não falhou, pois deu
a estes textos notas adequadas e que estes, por sua vez, não representam o
universo dos candidatos do Enem. A repórter insistiu e disse que, tirando as
cópias, sobraram menos de sete linhas autorais e Soares também insistiu que,
assim mesmo, são linhas autorais.
Autoria,
segundo o professor de linguística da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), Sírio Possenti, é ser autor e isto, por sua vez, acontece quando (sabendo
ou não) damos vozes a outros enunciadores e mantemos distância do nosso próprio
texto. Como nenhum discurso é isento de ideologia, já que toda palavra carrega
ideologia(s) consigo, inferimos que dentro de todo texto há elementos não
originais, isto é, que não são exclusivos do autor. Assim, dentro de um texto
há outros textos, já que existem enunciados anteriores. Tudo o que escrevemos e
falamos está entrelaçados de discursos anteriores que ouvimos e lemos e, ser
autor, é, justamente, dar vozes a esses outros enunciadores e o modo como
fazemos isso deve ser avaliado discursivamente, o que significa passar pela
questão da subjetividade e de sua inserção histórica e ter o mínimo de
densidade.
Neste
exato ponto, para embasar meu argumento, recorri a dois autores renomados:
Possenti e Bakhtin. Usei suas falas, seus enunciados para fortalecer minha
argumentação e candidatos ao Enem fazem o mesmo, mesmo que de outra maneira.
Concluímos,
sobre este aspecto, que o termo “autoria” não foi bem empegado nem pelo presidente
do INEP nem pela jornalista, já que ele não foi contextualizado teoricamente.
É óbvio que o Enem, assim como os demais vestibulares, tem pontos negativos que devem ser melhorados, como já dissemos em publicações anteriores e nesta, mas ele também possui pontos positivos, já que abriu e abre portas para milhares de brasileiros.
É óbvio que o Enem, assim como os demais vestibulares, tem pontos negativos que devem ser melhorados, como já dissemos em publicações anteriores e nesta, mas ele também possui pontos positivos, já que abriu e abre portas para milhares de brasileiros.
A
impressão que se tem é que a mídia não faria uma reportagem dessa se não
objetivasse encontrar falhas (e do modo como a audiência deste programa,
especificamente, vai mal, não é de se espantar que façam coisas desse tipo)
propositalmente. Interessante que, em relação à metade das redações ir para a
terceira correção, nada foi falado; sinal de que entendem bem de correção de
redação… só que não.
Os
pontos discutidos merecem, realmente, discussão, mas uma discussão mais
profunda e especializada e que não fique só no achismo da grande mídia e que
não seja cortada pela edição. Talvez, entre os professores consultados, houve
um debate interessante e situado, mas isso não apareceu; possivelmente eles
discutiram mais e melhor, mas a edição cortou essa parte, o que nos deixou com
essa impressão.
Para
ver a matéria escrita e o vídeo da reportagem, acesse:
http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/05/redacoes-pontuam-no-enem-mesmo-ferindo-criterio-tecnico.html
Referências
Bibliográficas:
BAKHTIN, Mikhail.
Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucite, 1992a
[1929]
[1929]
POSSENTI, Sírio. Indícios de Autoria. Perspectiva. Florianópolis, v.20, n.01, p. 105 – 124, jan/jun. 2002.
*CAMILA DALLA
POZZA PEREIRA é graduada e mestranda em Letras/Português pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente trabalha na área da
Educação exercendo funções relacionadas ao ensino de Língua Portuguesa,
Literatura e Redação. Foi corretora de redação em em importantes universidades
públicas. Além disso, também participou de avaliações e produções de vários
materiais didáticos, inclusive prestando serviço ao Ministério da Educação
(MEC).
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