De maneira criativa, Malba Tahan ensinou matemática e valores da cultura árabe.
O matemático Júlio César de Mello e Souza e também escritor árabe Malba Tahan (Crédito: Arquivo pessoal/malbatahan.com.br)
Quando criança, li uma história que me impressionou muito: era a narrativa de um homem que amava o silêncio. Ele acreditava ser a pessoa que mais cultivava a paz resultante da ausência de sons. Um dia, ele descobriu que havia um “clube dos silenciosos”, no qual pessoas como ele podiam compartilhar – sem palavras – esta preferência. Era um lugar agradável, no qual, dizia-se, reinava absoluto silêncio. Interessadíssimo, o homem quis tornar-se sócio e foi se reunir com o presidente.
A comunicação se deu por escrita e gestos. O presidente logo informou que seria impossível que o pretendente entrasse no clube. Ele indagou a razão, e o presidente – com todo o cuidado exigido – fez uma mímica em que lançava uma pena num copo cheio de água. Depois, jogava toda a água fora, só restando a pena.
“Quer dizer que com minha entrada todos sairão” – concluiu o homem. “Mas por quê?” – quis saber. Então, o presidente conduziu-o pelo clube, numa parte em que estavam vários sócios e, à medida que ele se aproximava das pessoas, elas afastavam-se apavoradas. Quando, ao fim, o presidente levou o homem até a porta de saída, ele desvendou o mistério, ao apontar o relógio do candidato: o mero tic-tac da engrenagem era motivo de tormento para os membros do clube dos silenciosos...
A história é uma, entre muitas outras, narrada pelo professor, matemático e escritor brasileiro Júlio César de Melo e Sousa, mais conhecido pelo pseudônimo com que assinava seus livros: Malba Tahan. Nascido em 1895, ele morreu em 18 de junho de 1974, ou seja, há 40 anos. Sem lembrar esta efeméride, em maio passado, o jornalista (que chegou a ser correspondente no Rio de Janeiro) e escritor inglês Alex Bellos escreveu no seu blog no jornal The Guardian uma postagem sobre Sousa, definindo-o como “um dos mais inspiradores divulgadores da matemática no mundo”.
De fato, após escrever uma série de histórias inspiradas nas “Mil e uma Noites”, já com pseudônimo de Malba Tahan, ele passou a combinar esse tipo de narrativa com uma criativa divulgação da matemática, produzindo aquela que é, para muitos, sua obra-prima: “O homem que calculava” (1932). Bellos refere-se generosamente a esse romance como um “livro encantador, uma declaração de amor à ciência islâmica e uma obra-prima narrativa que [...] é (em minha opinião) um clássico da literatura mundial”.
Sousa não tinha um pingo de sangue árabe, nem era muçulmano, mas era apaixonado pela cultura, tão importante no desenvolvimento da matemática, islâmica. Embora apreciasse as qualidades narrativas das histórias que envolviam a matemática, em minha infância e adolescência, preferia as narrativas de caráter mais lendário ou fantástico, como a do “rei do silêncio”. Em todas elas há, contudo, um elemento importante na educação e na formação das pessoas, que é a abertura para culturas diferentes da nossa.
Assim, estive, em minha adolescência, “inoculado” contra a série de preconceitos que passaram a ser associados à cultura árabe. Os estereótipos divulgados pela mídia (no contexto das guerras do Oriente Médio) não faziam sentido quando confrontados com o que Malba Tahan apontava como valores do mundo islâmico, como o apreço à justiça, à imaginação e ao saber.
A literatura de Malba Tahan exemplifica os poderes da narrativa e da produção simbólica (em suas diversas formas, inclusive midiáticas) para promover uma “educação multicultural”. Mal comparando, noto o quanto o México é visto de maneira simpática por muito jovens, por conta de... Chaves! Falando novamente de minha infância, e da cultura midiática, sempre me pareceu constrangedora a ideia de ofender os “japas” – descendentes do país dos animês que amava.
Acredito, por isso, que, num panorama midiático no qual uma cultura (a dos Estados Unidos) predomina tão amplamente, cabe às famílias e em parte também à escola favorecer uma abertura para outros mundos, a partir de produções simbólicas menos divulgadas.
Sou grato a Malba Tahan por ter me proporcionado tantas horas de prazer, enquanto me ensinava aspectos da cultura árabe, que aprendi a admirar e respeitar.
Uma história leva à outra
Como um leitor atento pode notar, na coluna passada falei que voltaria a discutir a relação entre o cinema e a educação. No entanto, embora me considere muito metódico para escrever – prefiro sempre ter as ideias bem organizadas antes de iniciar a redação – é comum que um pensamento leve a outro, de modo que entre a ideia inicial e o artigo final haja considerável diferença. Pensei nisso e lembrei a história do “rei do silêncio”, que descobriu que havia gente mais silenciosa do que ele. Daí, foi um pulo a Malba Tahan e à lembrança da efeméride de sua morte. O cinema pode esperar.
Richard Romancini
Richard é doutor em Comunicação, pesquisador e professor do curso de pós-graduação lato-sensu em Educomunicação da ECA-USP.
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